Um
dos focos do governo federal é na transformação digital. E essa
transformação engloba metas como levar mais serviços públicos para o
universo web e centralizar o acesso a eles. Um dos produtos criados em
prol disso é o portal gov.br, que unifica canais do governo para que o
cidadão não precise navegar em vários sites e aplicativos para encontrar
informações e serviços.
Para
Ciro Avelino, da Secretaria de Governo Digital do Ministério da
Economia, a qual está diretamente envolvida na evolução do gov.br, falar
sobre transformação digital é falar também sobre a Lei Geral de
Proteção de Dados Pessoais (LGPD). A seguir, o secretário-adjunto da
pasta aborda a conexão entre transformação digital e LGPD e o impacto
desses temas na relação entre cidadão e governo. Além disso, ele reforça
que a LGPD, prevista para entrar em vigor daqui a oito meses, precisa
da atenção de todos que serão afetados por ela para se modificar, de
fato, o modo de tratar dados pessoais e, então, aumentar a proteção a
esses dados, no Brasil.
Ciro
Avelino, antes de atuar no Ministério da Economia, foi
secretário-adjunto de Tecnologia da Informação e Comunicação no
Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, foi gerente
nacional de Relacionamento com Clientes na Caixa Econômica Federal, e
possui expertise em Administração Estratégica de Sistemas de Informação
pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Confira a entrevista.
Em
um evento de governo, neste ano, você falou sobre a sociedade
brasileira, reforçou que ela já é digital. E a LGPD relaciona-se a isso,
pois trata da proteção aos dados das pessoas, principalmente no
universo digital. A LGPD é importante para que o Brasil avance e atenda
às novas demandas dessa sociedade digital?
A
proteção a dados pessoais é, hoje, um dos pilares da transformação
digital, não só de governo, mas de toda a sociedade. Quando começamos a
atuar em uma sociedade extremamente baseada em dados, e na qual esses
dados passam a ser extremamente acumulados e valorizados, cuidar da
privacidade do individuo
é uma necessidade que tem que vir em conjunto e, por isso, a sociedade
brasileira aprovou a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais em 2018,
traçando já algumas diretrizes e procedimentos para se garantir essa
privacidade. A nossa sociedade discutiu durante muito tempo o tema,
acompanhou o movimento de outras partes do mundo, como da Europa, com o
GDPR, e chegou em um nível de maturidade muito bacana com a promulgação
da LGPD. Agora, aguardamos a constituição da Autoridade Nacional de
Proteção de Dados, que é quem terá a prerrogativa de manter o equilíbrio
do sistema. Afinal, a aplicação nova, de um princípio de proteção, num
meio novo que é o digital, pressupõe que uma instituição modere os
interesses, e é pra isso que basicamente será formada a ANPD. E, no
governo, temos a prerrogativa de utilizar os dados inclusive para dar
eficiência à Administração Pública. A LGPD determina, por exemplo, que
os dados têm que ser interoperáveis dentro do governo, respeitadas as
questões de privacidade do indivíduo, e que o setor público precisa
necessariamente dar conhecimento ao cidadão de como e para que está
usando os dados que são capturados.
E em que estágio o governo está nessa interoperabilidade, inclusive no que tange a LGPD?
É
uma agenda que tem evoluído rapidamente. Recentemente, inclusive, houve
a publicação do decreto nº 10.046, que dispõe sobre a governança no
compartilhamento de dados no âmbito da administração pública federal e
institui o Comitê Central de Governança de Dados. Ou seja, o decreto, à
luz do artigo 25 da LGPD, traça diretrizes e cuidados necessários para
que haja a interoperabilidade e, assim, o governo entregue um serviço de
maior qualidade, tirando do cidadão o papel de "agente cartorário de
governo". A proposta é que o cidadão não precise ficar transitando, com
uma série de documentos, e reapresentando isso a cada nova interação com
um órgão público. Estamos num processo de amadurecimento da relação
digital do governo com a sociedade e essa agenda tem ganhado muito
espaço nas discussões, e não só com foco no compartilhamento como também
na privacidade. Acredito que com a publicação do decreto o governo
passa a contar com normas claras sobre como deve trocar dados, e com um
colegiado para revisar decisões monocráticas dos órgãos e determinar as
melhores técnicas e práticas para a interoperabilidade.
O que mais está no radar do colegiado e da Secretaria, no que se refere à LGPD?
A
ideia é que o Comitê Central de Governança de Dados interaja de forma
clara e direta com a ANPD, por exemplo. O governo está preparando sua
estrutura, assim como toda a sociedade está se preparando para a
implementação da LGPD. Além desses movimentos mais recentes, a
Secretaria de Governo Digital tem trabalhado, com apoio de entes como
Serpro e Dataprev,
para construir plataformas em que tenhamos mais governança sobre os
dados que são interoperáveis dentro da Administração Pública. Há um
movimento claro de preparação do governo para a entrega de mais
eficiência ao serviço publico,
pois é para isso, principalmente, que existe o compartilhamento de
dados. Além disso, a proposta é termos uma governança maior em relação à
proteção dos dados pessoais, uma vez que, hoje, um dos artigos mais
caros que o governo toma conta é o conjunto de informações sobre as
características individuais do cidadão e sobre as transações desse
cidadão com o Estado.
Por
falar em proteção aos dados pessoais, há a PEC 17/2019, que quer
incluir essa proteção na Constituição. Também está em debate, na Câmara,
se a União deve ou não legislar de modo privativo sobre o tratamento de
dados. Qual um bom caminho para que a LGPD e a PEC - caso essa seja
aprovada - "peguem", de fato, num país como o Brasil, tão grande e
diverso?
Com
relação aos dados, saliento novamente que eles são diferentes de
qualquer outro ativo. A informação tem uma portabilidade que é
característica dela, e a ideia é que ela se movimente mesmo e circule em
todo o Estado para prover serviços melhores ao cidadão. Fora esse
propósito, aí é que temos que ter governança para evitar desvios de
função. E a proposta é que a ANPD possa ajudar nesse sentido, e que os
próprios comitês de gestão de cada instituição, de cada poder, de cada
ente federado, possam construir, em conjunto, um único ecossistema de
governança de dados. Essa é a nossa expectativa, que tenhamos um grande
sistema de governança. E um ecossistema que não esqueça que governança
deve também ser entendida como a necessidade de definir quem pode tomar
decisões e quais são as decisões possíveis de serem tomadas, respeitando
àquilo que já está definido na legislação ou que eventualmente venha a
constar na Constituição. Por fim, os desejos da sociedade são manifestos
em forma de lei, ou até em alterações na própria Constituição e, nesse
sentido, as alterações da PEC vão amadurecer no Congresso e estamos
acompanhando essa e outras discussões. E acho que Estados, municípios,
sociedade, empresas, todos precisam parar e analisar quais informações
detêm, geram, capturam para, assim, perceber como vão interagir nesse
grande ecossistema.
O
governo tem divulgado que a sociedade civil, ao sugerir até mesmo
soluções tecnológicas, é uma das parceiras na evolução do portal gov.br.
Acredita que a sociedade civil também pode contribuir na construção de
ferramentas em prol da proteção de dados pessoais?
Sim.
Acho que ela pode e deve. O governo precisa se entender como
plataforma, e entender que nem sempre a melhor solução para a sociedade
virar de uma construção do próprio governo. Podemos entregar elementos
para que a sociedade construa soluções para si. Isso já acontece em uma
série de situações, mundo afora e aqui no Brasil, em que o governo
fornece informações, tudo com controle de segurança e privacidade, para
que a sociedade organize soluções possíveis de serem entregues ao
cidadão. As soluções de plataforma, sejam as de governo para governo,
sejam as do governo para a sociedade, começarão a ganhar mais
importância por conta do conceito de permeabilidade. Afinal, não existe
um governo isolado da sociedade, nem na execução da política pública,
tampouco na construção dessa política. E quando se fala dessa
construção, não se está falando somente de governo com dados abertos
voltados para a transparência. Permitir consultas públicas é muito
importante, e o Brasil tem avançado bastante nisso. Porém, é essencial
que o governo desenvolva modelos de negócio a partir de ferramentas que
compartilhem com a sociedade informações estratégicas para que ela
também tome melhores decisões.
Há
algo mais que gostaria de destacar considerando o momento em que
estamos, de pouco menos de um ano para que a LGPD entre em vigor?
É
importante compreender que esse processo atual no Brasil se constrói em
conjunto, com governo, sociedade, empresas. A Estônia, que tem 99% dos
seus serviços afetados pelo meio digital, e a Dinamarca, que lidera o
ranking de e-gov
no mundo, mostram que o desafio da privacidade, até para países que
avançaram significativamente no tema, é algo que ainda está sendo
construído. E especialistas desses países defendem que isso precisa ser
construído junto com a sociedade. E esses exemplos mostram que o Brasil
pode e deve seguir na construção de um ecossistema que gere confiança
para todos, precisamos gerir as informações de forma que a sociedade se
sinta mais confiante no governo, e o governo mais confiante na
sociedade. Ou seja, um sistema que, por um lado, propicie que o governo
confie mais no cidadão e deixe de fazer certas exigências desnecessárias
e burocráticas, que tomam tempo e energia do cidadão. E que, por outro
lado, permita que o cidadão confie mais na Administração Pública e
entenda que as informações dele, que estão com o governo, estão
guardadas sob um conjunto de regras e de governança. Portanto, a LGDP é
pilar fundamental para a transformação digital, pois gera confiança para
esse ecossistema.
Bem, se lá na Dinamarca e na Estônia, que já têm o GDPR, ainda há muito que fazer, então o Brasil está no rumo certo, é isso?
Estamos
no caminho e nosso país não pode esperar o mundo tomar certas decisões
para vir a reboque. Afinal, a tendência é que a informação tenha,
inclusive, circulação transfronteiriça. Se há um outro ecossistema, no
mundo, que já tem maior maturidade em relação à proteção de dados, nosso
país tem que estar ao lado dele, senão ficaremos fora das relações
internacionais. E é preciso, mais que esperar decisões tomadas por
outros países e organizações multinacionais, acompanhar e forçar o
Estado brasileiro a se adaptar a essa realidade, que é a de cuidado com a
privacidade do cidadão.
3 comentários:
É interessante saber que o governo busca esta interação com a sociedade no geral neste quesito, pois, se para muitas empresas já não está fácil a adequação a esta novidade legislativa, imaginemos como isto está para todos os titulares que terão seus dados disponibilizados de uma forma ampla para empresas e para o próprio governo.
Iniciativa muito importante!
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